segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Al berto


tua presença só é visível nas fotografias dos barcos

as quilhas são a tua memória longínqua das Índias

vai

com os pássaros de bicos exuberantes e sonha

e estende o corpo cansado nos intervalos da erva fresca

onde alguém costurou pedras brancas na orla das grandes rotas

a cidade espera-te com o cais de madeira

junto ao rio abre as mãos toca nos corpos com os lábios

agarra-os dentro de ti

até que da terra lodosa brotem especiarias

porque só longe daqui acharás o que falta da tua identidade

só longe daqui conhecerás o sangue e talvez a felicidade

inundando um breve instante a noite de nossos desastres

só longe daqui

terás a consciência da quotidiana morte de Deus

repentinamente a voz cessou de se ouvir

eu tinha na palma da mão uma quantidade de comprimidos mortais

depois a voz fez-se ouvir a espaços irregulares: pobres unhas

pelas amarras húmidas dos lençóis rotos

barcos

velas sem sol papel pintado deslocando-se das paredes

silêncio espesso sarro da noite

uma viatura boceja no asfalto

o corpo treme cintila

resíduos de cidade ruínas da pele buenas noches

buenas noches mi amor

lençóis floridos ranho cabeças de cafres

pingue-pingue de torneira avariada esferas de flipper

noches buenas noches

barcos despedaçadpos bolor da memória

da memória da memória da memória

tinhas a cara mascarada com sangue quando a voz silenciou

a mulher ria

eu corria para ti sem conseguir alcançar-te

sentei-me na cama

veio-me do fundo da idade o momento em que nos conhecemos

resolvi levantar-me a meio da noite e escrever-te esta carta

lembro-me que tínhamos fome havia três dias

encostado ao mármore da mesa-de-cabeceira dormia a fotografia

e o maço de português suave filtro

a escuridão não era só exterior

conhecíamo-nos pelo tacto e pelo olfacto

tornámo-nos murmurantes

e tu refulges ainda no escuro dos quartos que conhecemos

cruzámos olhares cúmplices

falámos muito não me recordo de quê

e no calor dos corpos crescia o desejo

caminhámos pela cidade

eu metia a mão nas algibeiras

onde tacteava tudo o que guardara e possuía

um lenço uma caixa de fósforos um bloco de notas

sentia-me feliz por quase nada possuir

a imagem azulada de tuas mãos flutuava diante de mim

gesticulavas para me dizer que estávamos vivos

e apaixonados

escrevo-te

pelo corpo sinto um arrepio de vertigem

que me enche o coração de ausência pavor e saudade

teu rosto é semelhante à noite

a espantosa noite de teu rosto!

corri para o telefone mas não me lembrava do teu número

queria apenas ouvir a tua voz

contar-te o sonho que tive ontem e me aterrorizou

queria dizer-te porque parto

por que amo

ouvir-te perguntar quem fala?

e faltar-me a coragem para responder e desligar

depois caminhei como uma fera enfurecida pela casa

a noite tornou-se patética sem ti

não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr pela rua

procurar-te imediatamente

correr a cidade duma ponta a outra

só para te dizer boa noite ou talvez tocar-te

e morrer

como quando me tocaste a testa e eu não pude reconhecer-te

apesar de tudo senti a mão sabia que era a tua mão

mas não podia reconhecer-te

sim

correr a cidade procurar-te mesmo que me afastasses

mesmo que nem me olhasses

mesmo que dissesses coisas que me

mesmo que

e ter a certeza de que serias tu depois a procurar-me

correr a cidade com o corpo sedento

noite esgravatando a pele

bebendo nas veias as poucas forças que me restam

uma lâmina pelos sonâmbulos asfaltos

onde morrem ambíguos nomes de corpos sem sexo

o veneno agindo dos pés à cabeça

as mãos encharcadas de chuva tacteando um sexo qualquer

o sangue a chuva a memória desses dias tão difíceis

a noite a lambuzar com violência os rostos magoados

visões de sonhos ainda não sonhados

dilaceradas imagens de bocas coroadas por flores de aço afiado

ouço outra vez uma voz e agora não estou a sonhar

mas a escrever-te

e ouço-a em mim como se estivesse gravada

e a fita do gravador gasta pelo uso: a tua vida

será feita de embarcações e de solidão

beberás a secura dos cabos distantes

conhecerás ilhas de saliva profunda

olhar-te-ás nas fotografias

que as unhas aceradas do tempo arranharam

e para lá dessas imagens envelhecidas tudo sangra e dói

a tua infância a tua adolescência e o medo

de não conseguires sobreviver ao estrume deste país

avançarás pelo mar dentro

ferido por outros naufrágios imperceptíveis

descansarás

nas areias aveludadas da foz dalgum rio sagrado

e quando o mar se retirar

o sol a lua virão tatuar sobre o ombro

a silhueta viva dum bicho estelar

e a memória

essa parte calcinada da vida começará a doer e a latejar

navegarás pela cidade que adere aos dedos

como sarna mais antiga navegarás

com o escorbuto no coração transportarás o silêncio

e a escrita na fragilidade dos pulsos acorda

onde cintila a faca acorda

acorda o mar

está próximo o mar acorda

o mar acorda o mar acorda o mar

o mar

na gaveta onde o bolor cobriu a roupa guardo as fotografias

reparo como amareleceram suavemente os rostos

as mãos que seguram ramos de flores os cabelos os olhos

exala-se deles uma leve doçura cor de sépia

foram perdendo a definição esfumaram-se os contornos

numa das fotografias tens vestida a camisa de riscas azuis

noutras sorris olhas-me nos olhos

mas aquele sorriso não é o que ainda ontem te vi esboçar

o sorriso que tens na fotografia morreu

e no entanto está ali e fico perturbado quando o vejo

eu sei que nada está vivo na fotografia ou se repetirá

aqueles sorrisos aqueles instantes para sempre perdidos

a camisa às riscas votada à degradação lenta do papel

acabei por destruir as fotografias queimei-as

para que ninguém possa supor através delas

histórias a nosso respeito

e também para que minha mulher as não encontre

a única coisa que levo comigo é a cápsula de laranjada

atada a um cordão em couro deste-ma tu um domingo

quando ainda passávamos perto do rio

íamos ver o sol morrer nas águas

caminhávamos sem destino pela cidade

o crepúsculo atingia-nos com misteriosos desejos

seria inútil falar das razões da minha viagem

no fundo nada a justifica

embora a minha vida ultimamente seja um barco sem rumo

de vaga em vaga de ressaca em ressaca

fui arrastando o meu próprio naufrágio

mas ser-me-ia difícil falar-te destas catástrofes

prefiro calar-me para sempre ou enlouquecer

ou avivar a memória de certas visões aciduladas

enquanto te escrevo esta última carta

é também a última vez que penso em ti

sempre habitei este país de água por engano

estas planícies asfaltadas pelo tédio estes prédios de urina

estas paredes vomitadas

onde as diáfanas aves da solidão embatem e definham

deixam cair dos bicos fios de sangue e de cuspo que te evocam

vou migrando de corpo para corpo

sem nunca conseguir definir o voo complexo do meu

escrevo-te ainda lúcido

no entanto ignoro se chegarei vivo ao fim da noite

quem poderá afirmar que daqui a instantes

não atravessarei os espelhos impossíveis da noite?

ferindo o corpo rasgando borboletas de luz

no écran da cidade amanhecendo em mim

esqueço como me chamo

e tenho a certeza de que nunca mais nos veremos

mesmo no caso de eu permanecer aqui

neste país de água por engano

descobri que a morte calça o mesmo número de sapatos que eu

sabes

por vezes queria beijar-te

sei que consentirias

mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado

porque os beijos apagam o desejo quando consentidos

foi melhor sabermos quanto nos queríamos

sem ousarmos sequer tocar nossos corpos

hoje tenho pena

parto com essa ferida

tenho pena de não ter percorrido teu corpo

como percorro os mapas com os dedos teria viajado em ti

do pescoço às mão da boca ao sexo

tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro

acordado

perto de ti as noites teriam sido de ouro

e as mãos teriam guardado o sabor de teu corpo

ah meu amigo

estou definitivamente só

estou preparado para o grande isolamento da noite

para o eterno anonimato da morte

mas perdi o medo

a loucura assola-me

preparo a última viagem às Índias imaginadas

disseram-me que só ali se pode descansar da vida

e da morte

perscruto a razão profunda desta viagem

ou talvez seja já a torna-viagem o que vislumbro

e não valha a pena partir porque já estou de volta

sem o saber

hesito em deixar-te escrito mais do que um simples adeus

de qualquer maneira por muito longe que me encontre

se pousares a tua mão sobre a minha testa senti-lo-ei

esse gesto aliviar-me-á de todas as dores

a manhã aproxima-se cortante

ouço barcos largarem do cais

preparo a lâmina

estendo velas em agonia uma lâmina de vidro

para fender as águas imperturbáveis do dia sem bússola

destruo cartas papéis manuscritos outros sinais

destruo imagens que me chamam e me querem reter aqui

releio estas poucas palavras para ti: child of the moon

debaixo das cerejeiras uma serpente antiga adormeceu

em tuas mãos de pétalas lunares

movem-se astros em cima da alba da pele

olharemos os insectos perfurarem a treva da noite

e tecerem claridades

mas já não tínhamos mais noite a desvendar

lembro-me

a cidade está cada vez mais rente à nossa separação

caminhamos em direcções opostas

ou melhor

eu caminho enquanto tu não existes

a noite aproxima-se com seus territórios de sombra e fábula

areias penumbras oscilantes apagando resíduos de corpos

teu corpo minúsculo arrefece dentro de mim

quando as feras despertam nos olhos abandono-me

à lama colorida dos terrenos vagos

dói-me a voz ao chegar aos lábios

os dedos penetram o metal cintilam

conchas abertas ao sonho

onde terei abandonado a nossa paixão?

um cristal flutua no enxofre de remotas cidades

compridos cabelos de jade espalham-se sobre o rosto

indecifráveis vegetações

o sonho torna-se exótico quando abres os braços

surgem nas pálpebras caudalosos rios

neles pouso a cabeça deixo-a flutuar

uma mulher anda aos ziguezagues pelos corredores da casa

vejo peças de vestuário espalhadas pelo chão

a mulher grita

corre à roda do quarto insulta os electrodomésticos

abre o frigorífico

atira com os legumes congelados ao chão espezinha-os

esborracha-os contra a parede chora

ri pega numa camisa de riscas e rasga-a em mil tiras

recomeça a correr

entra na casa de banho e abre todas as torneiras

abre as janelas e ri

e lambe as vidraças sujas

derrama açúcar dentro do telefone

e por cima das petúnias de plástico fluorescente urina

mas tudo isto se passou há muito tempo noutro lugar

noutro corpo

viro-me para o sul de nossos corpos e descubro uma ilha

percorro demoradas estradas de tabaco e o ouro envelhecido

dos caminhos alquímicos desvendo

os sinuosos mistérios da seda e da pimenta as grandes rotas

do vento bebo o amargor da vida errante

onde uma mulher dorme sossegada sobre a cama desfeita

o telefone toca obessivamente toca

um corpo translúcido surge do papel em que te escrevo

revela-se-me a água dos gritos repetidos

um foco de luz incide-me sobre a boca fechada

procuro-me na silenciosa cinza de tua memória

pela casa atravessada de ecos de fogos postos respiro

dificilmente ouço zumbidos de flipper

o quarto povoa-se de rostos alados mecânicos olhares

pequenas garras de ar

desfazem-se em finos cordéis de terra

a mulher avança sob o peso da tempestade

aqui esta sempre a chover

o frasco de barbitúricos conta-me o falhado suicídio

a mulher tem o teu rosto ou o meu já não sei

a luz percorre-te o corpo nu

é noite há muito tempo

fixo um ponto invisível da parede estou sentado na cama

escrevo-te

e tenho a certeza de que ninguém será capaz

de roubar a minha morte

porque eu moro neste país líquido por engano

e tenho dificuldade em imaginar o sono fora de meu corpo

se quiseres vem dormir perto de mim vem

sonharemos um país fabuloso junto ao coração das árvores

vem

antes que trema o corpo no frio sem deuses e na loucura

quase amanhece

lá fora as avenidas mantêm-se vazias

subúrbios sonolentos no refrão dum brutal rock'nd roll

vicious you are so vicious

baunilha azul nos lábios orgasmo de baunilha

tarzan de pastelaria um cigarro de chocolate come

chocolates come sentado no cimo do ice cream toute la nuit

fuck fuck

fuck em diferido

os eléctricos já passaram e as mãos já não são as minhas

têm sede

sede de nudez

mas vou partir deixar-te aí

como se fosses tu que me abandonasses

viajar antes da alba partir

para longe deste inúteis dias

eu

pobre de mim

navegador da noite próxima da morte

vou acendendo no sangue os sonhos dum povo que não sonha

eu

arquipélago de cinzas oceano do nada

vou de veias inchadas e penso que talvez não valha a pena

mas vou

preciso encontrar o lugar certo para o nosso amor

queres vir comigo?

já avisto da gávea inquietantes iluminuras de rostos de afogados

mãos antigas como rochedos peixes fantásticos

bocas aflitas e tua boca mordendo

o cordame avariado pelo sal

ah meu amigo

eis o sofrimento de meus lábios gretados pelo sarro oceânico

eis minhas unhas doentes protegendo o sexo aberto

às monções aos ventos adversos às vagas rumorosas

vou abandonar-te no lado claro da noite

onde o tempo é um fio de luz rasgando a espessura do corpo

vou partir

com estas manchas de frutos sorvados no coração

para sempre vagamundo

no corredor de espelhos sem tempo deixo-te o sonho

onde já não arde nenhum rosto nenhum nome

nenhuma voz de silente treva

nenhum paixão

abandono-te para além da linha nítida da manhã

onde dizem que tudo existe se transforma e continua vivo

longe

muito longe desta inocente memória das Índias


(obrigada Mi - Para sempre no meu coração)